Dom João III - O Piedoso - O princípio da Sujeição
- Glaucy Lucas
- 16 de out. de 2019
- 17 min de leitura
Aquele que derramar o sangue de um homem, pelo homem seu sangue será derramado". gêneses 9:6.

Dom João III atendeu a recomendação de seu pai e manteve seus antigos servidores a fim de não desmantelar a máquina que produzia lucros ao reino, para que não sofressem interrupções os programas das viagens de descobertas. Isto o rei defunto muito pediu a seu filho para que o reino fosse preservado e o patrimônio não sofresse decréscimo. Todos foram mantidos nos seus cargos por disposições testamentárias as quais estava obrigado a cumprir. Assim, ficaram nos seus ofícios os conselheiros do rei Dom Manuel:
- António Carneiro, secretário de Estado, que seria substituído por seu filho Pedro de Alcáçova Carneiro, em caso de muita velhice, doença e morte;
- Martinho de Castelo Branco, Conde de Vila Nova de Portimão;
- Álvaro da Costa; António de Noronha, e outros.
Os amigos e servidores da sua casa, e os que voltaram de Castela para constituir sua corte eram:
- Luís da Silveira, que se tornou conde da Sortela, ficou encarregado de missões diplomáticas;
- António de Ataíde, primeiro conde da Castanheira, vedor da fazenda, ofício que desempenhou por 28 anos; amigo e conselheiro do rei, foi mandado à Corte inglesa como embaixador;
- João da Silva, conde de Portalegre, foi seu mordomo mor e regedor da Justiça;
- Pedro Mascarenhas foi seu estribeiro mor, desempenhou também missões diplomáticas importantes.
Os antigos Conselheiros atuaram logo no início do reinado, quando Dom João III quis implantar a inquisição, e foi por eles dissuadido. Luís da Silveira recebeu do rei a incumbência de ir à Castela tratar de assuntos de muito peso: o casamento da Infanta Isabel com Carlos V; o casamento do Rei com Catarina, irmã do rei castelhano; e a investida recente às possessões portuguesas. A incursão de Castela às ilhas Molucas exigia do rei uma resposta a uma forte agressão à sua honra e aos seus domínios, com quebra de tratados, com perigo para o reino.
Dom João III ficou nas mãos de Carlos V que, sem dar tempo às exéquias, cobrou a fatura por seu silêncio e todas as ajudas prestadas.
Carlos V subiu ao trono de Castela e Aragão onze meses depois da morte de Fernando de Aragão, que ocorreu em 16 de julho de 1518. Ficou retido na Flandres todo aquele ano a conter revoltas dos protestantes, que não queriam como governante o Cardeal Adriano de Utrecht, que depois foi papa Adriano VI. Foi para Castela aos dezenove anos e subiu ao trono com a ajuda financeira da família Fuggar, os Fúcares para os de Castela. O tesouro estava depauperado pelas guerras de sucessão e ainda não chegara nenhum ouro das terras recém descobertas por Colombo. Este, a conselho do rei Dom Manuel, navegou pelas ilhas por dois anos, retardando sua chegada ao continente, para que fossem completados os planos de descoberta das terras do Brasil. Hernan Cortez foi o primeiro a pesquisar ouro na ilha de Cuba, do que deu notícia à Castela em 1504. Este mesmo Cortez fez a primeira expedição ao continente em 1517, indo até Yucatan. Porém, o ouro foi achado em Tenotchtlan mais tarde. Os cofres ficaram exauridos no combate à revolta dos comuneros, que tentavam entronizar Joana, a louca, como rainha. Carlos V, seu filho, subjugou a revolta dos comuneros e manteve sua mãe presa em Tordesilhas, com Catarina, sua irmã menor. Sem recursos, Carlos V esfolava o povo com muitos impostos, mas não supriam seus gastos. Ainda reinava Dom Manuel quando Carlos V fez seu primeiro assalto aos cofres e às possessões portuguesas. Por intermédio da rainha Dona Leonor, irmã do rei Dom Manuel, CarIos V teve a seu serviço o navegador Fernão de Magalhães. Este navegador era pagem da rainha dona Leonor desde os dez anos, e por ela foi mandado prestar serviço a Castela; portanto, não era um traidor, mas um obediente servidor. Levou consigo alguma informação sobre as ilhas Molucas, porém afirmou que não conhecia as ilhas Ternate e Tidor, as mais rentáveis, numa tentativa de impedir o saque às rendas de Portugal. A viagem de circum-navegação começou em 20 de setembro de 1518, dois meses após o consórcio do rei Dom Manuel com dona Leonor, irmã de Carlos V, que se dera no dia 16 de julho de 1518. Dom Manuel não teve como impedir este saque por duas razões: a rainha Dona Leonor, sua irmã, tinha livre arbítrio e tomava decisões como governante. A segunda razão é a revolta de Dom João III, seu próprio filho, instigada pelos duques; alimentada pelos servidores de sua casa; com o apoio e serviço de todos os parentes castelhanos que estavam em Lisboa; com assessoria direta da gente de Castela. O rei ficou dois anos sem poder entrar em Lisboa, que fora ocupada pelos revoltosos. Havia na corte muitos servidores de Castela que entraram no reino desde 1497, ano das suas primeiras núpcias com Dona Isabel, filha de Isabel a católica, como atrás ficou dito. Ajudados pelos duques, tiveram acesso aos cofres do reino, enviando à Castela tudo que puderam amealhar. Pacificada a revolta, estavam os cofres arrombados com grande desfalque, e descortinado ante os olhos de Castela quão rico era o reino. À beira da falência, Castela tratou de arredar o empecilho àquela rica fonte, mantendo o fogo da revolta aceso por intermédio das intrigas de que já tratamos lá atrás. Usando a amizade e confiança que o príncipe Dom João tinha com os primos castelhanos, duques e condes de Portugal, Castela fez sucumbir a Dom Manuel, pondo no trono seu filho com as mãos tintas do sangue paterno. Isto lhe tirou todas as forças e autoridade perante o próprio reino e as nações. Dom João III ficou nas mãos de Carlos V que, sem dar tempo às exéquias, cobrou a fatura por seu silêncio e todas as ajudas prestadas. Em poucos meses, migrou para Castela todo o tesouro português, sem nenhuma ação concreta para o impedir. Um pouco aliviado das aperturas, Carlos V aguardava o resultado da viagem de Fernão de Magalhães, enquanto Dom João III se consumia em preocupações, temendo que Castela não respeitasse o Tratado de Tordesilhas.
Ora, a ida de Fernão de Magalhães àquele reino, para fazer a viagem de circum-navegação, era já desrespeito aos Tratados, contra o que Dom João III devia protestar e impedir, mas satisfez-se em atirar as culpas de traição ao navegador, que só teve o azar de prestar obediência a dois poderosos governantes do mesmo reino. Carlos V não disfarçou suas intenções de criar provas de que as ilhas Molucas estavam dentro dos domínios de Castela, mas Dom João III não contestou, e em silêncio esperou o resultado já sabido porque não tinha forças perante Castela. A ida do navegador àquele reino foi coisa tratada entre Dom João III e Carlos V antes das núpcias de Dom Manuel. O príncipe Dom João intercedeu junto à rainha Dona Leonor, sua tia, que sem demora, atendeu as pretensões do aliado flamengo. Fernão de Magalhães sentia que não voltaria da viagem com vida, e fez um novo testamento em Sevilha, convidando também alguns amigos para acompanhá-lo, entre os quais António Pigafeta, que fez o diário da viagem. Chegando ao arquipélago Guam, a frota fez seu comércio, seguindo rumo à ilha Cebu, atuais Filipinas, a 7 de abril. Ao final do mês, morreu o navegador em combate com um tal Lapu Lapu, coisa que só é contada pelos castelhanos. A ilha era possessão portuguesa e nela havia muitos portugueses vivendo em paz com os nativos desde sua descoberta, portanto não é verossímel que tenha havido tal combate. Na verdade, Fernão de Magalhães foi morto por Juan Sebastián Elcano, capitão da nau Vitória, a única a retornar à Castela. Por este assassínio, houve na ilha um conflito entre portugueses e castelhanos, que perseguiram a nau Vitória, apreendendo uma de suas chalupas. Em 1522, Carlos V mandou navios a Tidor, como se dela tivesse posse, carregados com 40 bombardas e 60 bestas, com a promessa de mais 20 naus para breve. O rei de Ternate deu aviso a Jorge de Albuquerque, capitão de Málaca, pedindo que o rei enviasse socorros. Dom João III, temeroso de que esses fatos impedissem o casamento de sua irmã, ordenou a Luís da Silveira que deixasse o assunto da invasão às ilhas, e tratasse do casamento da princesa Dona Isabel. Mas João da Silveira insistiu na sua propositura, recebendo de Carlos V uma ordem de soltura dos castelhanos presos em Portugal porque não reconhecia seu domínio sobre as ilhas. Propôs que se fizessse uma junta para estudar o assunto para que as divergências fossem superadas e o casamento com Dona Isabel se realizasse. Dom João III mandou Luís da Silveira voltar e aceitou a junta exigida por Carlos V, composta por matemáticos, astrólogos, pilotos e letrados para determinar a quem pertenciam as Molucas. Dom João III estava ciente de sua fraqueza diante de Castela e consequente perda das ilhas. Era preciso assegurar que o casamento de Dona Isabel, sua irmã, fosse realizado, e nisto pôs todo o empenho. Preso como estava a Carlos V, nenhum documento serviria de prova a favor de Portugal, porque a força da razão jazia nos segredos do rei. Vendo a fraqueza de Dom João III, o rei Francisco I de França enviou piratas que roubavam tanto navios castelhanos quanto portugueses, com mais danos a estes últimos, alegando pertencerem a Carlos V, com quem tinha guerra aberta. As demais nações, animadas do mesmo espírito, também mandaram seus piratas, ficando os mares infestados de corsos que quase extinguiram o comércio. Ninguém estava seguro. Os gastos do reino dobraram para manter as naus nos mares para o comércio dos produtos, enfrentando o ataque dos piratas. Era preciso sair em comboios e frotas, o que provocou grande quebra, agravando as dificuldades financeiras do reino. Ademais disso, não tardou a vir sobre ambos os reis o castigo, porque Deus é amor, mas é justiça e não deixa sem castigo o mau e perverso. Logo depois da morte de Dom Manuel, ano de 1521, houve em Castela uma seca tal que, não houve colheitas, vindo a fome; o gado morreu todo por falta de água e muitos morreram de sequidão. Eram tantos os mortos que os ares ficaram pútridos, donde lhes veio a peste que matou muitos mais. Houve uma grande seca no norte da África, que foi mais grave por ser mais quente e árida a terra. Houve uma grande fome em Safim e Azamor que seus habitantes se vendiam aos portugueses ou se entregavam sem nada pedir para terem o que comer. O comércio quase acabou e a renda que provinha dessas cidades cessou. O reino teve que socorrer a todos com as provisões de alimentos.
No mês de dezembro de 1523 ficou acertado que, astrólogos, matemáticos, pilotos e letrados se reunissem em algum lugar da fronteira para deliberar sobre a linha demarcatória do Tratado de Tordezilhas. A decisão do Concílio seria arbitrada pelo papa. Nunca houve dúvida do domínio português sobre tais conquistas, e não há nenhuma notícia de que houvesse alguma navegação castelhana naquelas partes; e o Meridiano de Tordesilhas, que dividia a área dos domínios de cada um, nunca esteve em dúvida. Toda a questão foi criada por Carlos V que tinha nas suas mãos o rei Dom João III. Nenhum testemunho ou documento apresentado pelos portugueses teve valia e as ilhas acabaram sob o domínio do rei de Castela. Dom João III sabia que tinha perdido esta batalha e apenas tomava medidas protelatórias, que só teve uma conclusão em 1529. A questão terminou com o Tratado de Saragoça, que obrigava Dom João III a comprar as imposturas de Carlos V sobre as Molucas, pelo preço de 350 000 ducados de ouro, para cujo pagamento foi preciso recorrer a uma coleta ao povo. A única dúvida existente sobre esse domínio era a ameaça de Castela de trair os segredos de Dom João III que o podiam apear do trono. O rei deu as ilhas e mais 350 000 ducados de ouro pelo seu trono. No decorrer das negociações, Dom João III reuniu cortes e discutiu o seu casamento com Dona Catarina, e o casamento de sua irmã Dona Isabel com Carlos V. Este não se mostrou interessado porque via Portugal como um delicioso fruto maduro ao alcance de suas mãos. Alegou estar ainda jovem, com a obrigação de firmar seu reino; mas ocultamente tentava casar com a filha de Henrique VIII. As instâncias de Dom Manuel para estes consórcios são conhecidas apenas pelos testemunhos de Dom João III: não há mais ninguém que deles dê notícia. Porém, podem ser verdadeiros porque estes casamentos já estavam tratados de longa data. Vendo o desinteresse de Carlos V, Dom João se inclinou à proposta de Francisco I de França, que oferecia Dona Carlota, sua filha, para tê-lo como aliado. Isto fez para tentar pressionar o rei de Castela, porém temia tornar-se aliado do irmão de Carlos V. Em meio a tantas dúvidas, tornou as negociações demoradas até que morreu a princesa Carlota sem casar. As cortes decidiram que se fizesse o casamento de Dona Isabel por ser o que menos influía nas coisas do reino. Mas o casamento do rei com dona Catarina ficaria suspenso até que houvesse decisão das questões entre Castela e Portugal. O rei era jovem e tinha irmãos que lhe serviam de filhos, portanto podia esperar por uma proposta melhor, enquanto Carlos V só tinha irmãs. Estando Luís da Silveira preste a partir com a embaixada dos casamentos, chega à corte notícia de que naus de Castela tinham aportado em Cabo Verde, carregadas de mercadorias da Guiné. Foram ter às ilhas por causa de uma tempestade que os deixou desprovidos de comida por cinco meses, tendo morrido vinte cinco pessoas. Os portugueses da ilha prontamente lhes prestaram socorro, dando-lhes todo necessário para prosseguirem viagem. Indagados da rota que faziam, responderam que vinham das Antilhas, que pertencia à Dona Beatriz, sogra de Dom João II, portanto, era possessão portuguesa. Mas a mentira foi logo descoberta e os portugueses deram neles que, com muita pressa se fizeram à vela deixando um batel para trás. Treze homens que estavam em terra o tomaram e o mandaram ao rei com a notícia do ocorrido. Dom João III mandou quatro caravelas em busca da nau, que escapou, e chegou à Sevilha. Mandou o rei que João da Silveira partisse para Castela mais devagar para lhe dar tempo de tratar do assunto sem prejuízo de sua embaixada.
Carlos V estava em Valhadolid onde recebeu as notícias do acontecido. Muito irado, escreveu ao seu secretário Cristóvão Barroso para requerer de Dom João III que prendesse os treze homens que tomaram seu batel, e sobre a perseguição que fizera à sua nau exigia explicação, uma vez que a mesma não tinha tocado terras de sua possessão, o que não era verdade. Em carta a Dom João III dizia que as capitulações de pazes antigas e novas tinham sido quebradas. Do seu lado, Dom João III mandou que Carlos V devolvesse toda a especiaria que não viesse das Ilhas Molucas, por serem de terras dentro de sua demarcação e respeitasse os tratados de não ir às terras do seu domínio. Luís da Silveira chegou à corte de Carlos V no começo do mês de novembro de 1522, e recebeu missiva do rei para que despedisse todos os que com ele foram para tratar do casamento e ficassem só os que podiam tratar da questão do saque à Guiné e outras partes do seu domínio. O embaixador não atendeu a ordem por achar que seria útil continuar com toda a comitiva, o que muito aborreceu o rei. Luís da Silveira foi recebido por Carlos V de má vontade, e sem ouvir, despediu-o dizendo que, no tocante às coisas das ilhas Molucas, entendia mais do caso ocorrido que ele. Oito meses esteve Luís da Silveira na corte de Castela e nada pôde fazer. O caso foi levado a juízo para que fosse examinado pelos magistrados de ambos os reinos, impondo Carlos V a soltura de todos os presos castelhanos que se achavam nas naus apresadas. Dom João III não aceitou e mandou Luís da Silveira regressar ao reino. Este foi se encontrar com o rei em Almeirim, que o recebeu em público; e, perante todos, Luís da Silveira não beijou a mão que lhe foi estendida. Por este seu ato não foi recriminado, nem em público nem em particular, desculpando-se ele depois. Prestando o relatório do seu serviço em Castela, pediu ao rei mercês, que lhe foram negadas, sendo dispensado. Ficou servindo como guarda mor.
Por não terem os reis chegado a um acordo no caso das incursões nas ilhas Molucas e outras possessões portuguesas, as alianças matrimoniais ficaram suspensas. Porém, o apetite de Carlos V por bens e riquezas crescia, pondo os olhos, desta vez, nos bens de Dona Leonor, a viúva de Dom Manuel. Ele exigiu que sua irmã voltasse à Castela com todos os seus bens, juntamente com a filha Dona Maria. Ora, indo-se a mãe, viúva de 23 anos, ia com ela uma grande riqueza; indo-se a filha de tenra idade, saía do reino a mais rica herdeira da Europa, com a qual Francisco I da França tencionava casar um filho. Para impedir a evasão desta grande fortuna, o duque de Bragança dom Jaime, propôs que Dom João III casasse com a madrasta. Não havia melhor união que a do rei com dona Leonor, mãe de sua irmã Maria, por evitar perdas e suprir os combalidos cofres. A desfaçatez imoral dos duques não tinha limite. Não se sabe como Dom João III encarou a ideia do duque, mas saiu ele de Lisboa e foi para Barreiros, perto do Lavradio, onde estava Dona Leonor. O rei fazia-lhe frequentes visitas à espera de que o absurdo fosse ignorado com uma dispensa do papa. Dona Leonor tinha um único interesse: o de preservar seu nome e seus bens. Comunicando ao irmão Carlos V tudo que se passava, ele apressou sua volta à Castela. A ideia de dom Jaime repugnava a todos e Dom João III seguiu a opinião de Francisco de Portugal, Conde de Vimioso, autorizando a saída de Dona Leonor, no ano de 1523, que foi recebida com júbilo por seu irmão Carlos V. Dona Maria, sua filha, ficou retida no reino por ser Dom João III seu tutor instituído por seu pai, o rei Dom Manuel.
Dom João III teve um fugaz romance com Isabel Moniz, filha do alcaide, moça da câmara da rainha Dona Leonor, sua tia, de que lhe nasceu um filho que se chamou Manuel, que, dizem alguns ter morrido à nascença; nasceu um segundo filho que se chamou Duarte. Alguns dizem que houve apenas um filho Manuel, que teve seu nome mudado para Duarte, mas cremos que eram dois os filhos. Duarte nasceu em 1523 e, embora não pareça, isto pesou nas decisões de Carlos V, pois, bastardo ou não, havia um herdeiro em Portugal. Ficara, também, com Dom João III a imensa riqueza de Dona Maria, sua meia irmã. Ademais, Castela não tinha uma estrutura nem a experiência no mar como tinha Portugal para manter a navegação e a posse de suas conquistas, o que fez Carlos V descer de sua soberba e concordar em casar sua irmã mais nova com Dom João III. Enquanto casava sua irmã, tinha tempo para desfazer o noivado com Cláudia, filha de Luís XII da França; e, como uma raposa, esperou pelas uvas maduras. Dedicou-se ao casamento de sua irmã Catarina, apertando o laço do seu domínio no pescoço de Dom João III, à espera da evolução favorável dos negócios. Ao receber notícias da concórdia para o enlace, Dom João III despachou logo sua comitiva para Castela, e a 19 de julho de 1524 foi assinado em Burgos o contrato de casamento. A 2 de julho de 1525, Dona Catarina saiu da prisão em Tordesilhas, onde jazia com sua mãe desde tenra infância, para casar. Era bela, porém, seca, apática, e distante. Não podemos dizer que teve uma boa educação, nem que tivesse alguma experiência porque só saiu da prisão, onde estava encerrada com sua mãe, para casar. Trazia uma profunda mágoa de seu irmão, que vai orientar toda sua vida como rainha. Levava um dote de 200 mil dobras de ouro castelhano, valor muito inferior ao que tinha saído de Portugal com a viúva Dona Leonor. O dote seria pago em três anos, descontado o valor das joias, ouro e prata que a noiva levasse consigo. A primeira parcela seria paga um ano depois de consumado o matrimônio. Dom João deu de arras a Dona Catarina 66.666 dobras de bom ouro, que eram a terça parte do dote trazido por ela, cabendo a Carlos V dar ornamento, vestidos, atavios e mais dois mil contos de maravedis por ano. Ficou assentado no contrato que ambos os reis ficavam obrigados a prestar ajuda militar sempre que houvesse necessidade. Concluídos os contratos, Dom João III mandou seus dois irmãos Dom Luís e Dom Fernando, com muita gente nobre, à Elvas, para receberem a noiva e trazê-la ao rei. Dona Catarina foi para o Crato onde foi recebida e Dom João III fê-la herdeira de todos os bens da rainha dona Leonor, sua tia, quando esta falecesse; quanto aos bens da rainha Dona Leonor, viúva de Dom Manuel, que tinha casado com o rei de França, foram-lhe dados de imediato. Sua amargura pelo que lhe fez o irmão, tornou-a mais unida ao rei seu marido, ganhando dele a confiança. Conhecendo a alma do seu irmão, Dona Catarina aconselhava Dom João III de modo a frustrar os planos de Castela. Viúva, tentou impedir as intervenções dos duques de Bragança, e obstou a união destes com os duques de Aveiro, temendo o poder da casa de Bragança, pois o duque Jaime de Bragança tinha o documento que o tornava rei, caso não houvesse herdeiros. Os Duques de Aveiro eram os filhos de Dom Jorge, filho de Dom João II. Com esta união, Dom Teodósio tornava-se herdeiro legítimo do trono, caso não houvesse herdeiros. Dona Catarina, ciente do perigo que corria seu neto Dom Sebastião, juntou-se ao Cardeal dom Henrique para o impedir, mas tudo foi baldado. A 3 de setembro de 1554, deu ordem contra a união do viúvo dom Teodósio de Bragança com Dona Beatriz de Lencastre, sobrinha de Dom João, Duque de Aveiro. Mas não foi obedecida, e eles casaram em segredo. Dona Catarina mandou-o sair da corte, no que foi obedecida por pouco tempo, pois não contava com a simpatia de ninguém.
Tendo o rei Dom João III concluído o negócio de suas bodas, ocupou-se com o casamento de Dona Isabel, uma formosa princesa com um opulento dote. Porém, no período em que se discutiam as questões das Molucas, Carlos V tinha assinado o Tratado de Windsor, em 16 de junho de 1522, pelo qual se obrigava a casar com Maria Tudor, filha de Henrique VIII. No entanto, esta princesa tinha apenas seis anos, e Carlos V alegou que sua tenra idade era um obstáculo ao cumprimento desta cláusula contratual, visto sua necessidade de ter geração sem demora. Contudo, não houve prejuízo à aliança militar contra os protestantes, objeto principal do Tratado. Em 1525, reuniram-se as cortes em Toledo para aprovar a união de Carlos V com Dona Isabel, a rica princesa cujo dote muito bem faria aos cofres de Castela. Dom João III reuniu cortes para deliberar sobre o dote de Dona Isabel, que era de 900 mil dobras de ouro castelhanas ao que a Corte objetou. Porém, o rei apresentou a proposta de subir os impostos para pagar o dote, e a corte manteve-se contra. Venceu o rei, ainda que tal proposição agravasse as já tão más finanças do reino. Estando todos alegres a celebrar as bodas, veio-lhes a notícia da morte de Dona Leonor, tia de Dom João III. Dona Leonor se tornara a rainha velha e reinou desde a morte de seu filho o príncipe Afonso até sua morte. No dia 30 de janeiro de 1526 partiu a princesa ao encontro do rei de Castela, levando consigo imensa fortuna. Carlos V menosprezava Dom João III a tal ponto que não foi receber a esposa como era praxe, mandou-a esperar por ele em Granada.
Dom João III foi feliz na sua vida conjugal, tendo se identificado profundamente com sua esposa e ela com ele. Estava provado que a escolha de Dom Manuel fora acertada e seu filho, para além da esposa, tinha uma fiel aliada. Porém, o sangue de milhares de inocentes não cessava de cair das mãos do rei, com o que concordava a rainha. Todos os dias chegava a Deus o clamor dos inocentes torturados, mortos e roubados, a pedir justiça. Os bens destes inocentes mortos em tormentos; os bens dos próprios irmãos, assassinados a sangue frio, em nome de Jesus, entravam no tesouro real por sua ordem, com geral aprovação. Creio que Deus sentiu para com Dom João III o mesmo que sentiu contra Acabe, rei de Israel, e exarou contra ele a mesma sentença que dera àquele rei: "Eis que trarei mal sobre ti, e arrancarei a tua posteridade, e arrancarei de Acabe a todo o homem, como também o encerrado e o desamparado em Israel" (I Reis 21:21). Dom João III teve nove filhos e todos eles morrerem diante dos seus olhos. Pereceu toda sua geração, chegando à idade adulta apenas o príncipe João Manuel.
Esta é a geração do rei Dom João III de Portugal:
Afonso, Príncipe de Portugal, n. 24 de fevereiro de 1526, Almeirim, m. 12 de abril de 1526, Santarém, grave doença na cabeça;
Maria Manuela, Princesa de Portugal, n. 15 de outubro de 1527; casou com Filipe II de Castela e morreu de parto em 12 de julho de 1545;
Isabel, Infanta de Portugal, n. 28 de abril de 1529, m. 22 de maio de 1530;
Beatriz, Infanta de Portugal, n. 15 de fevereiro de 1530, m. 15 de março de 1530;
Manuel, Príncipe de Portugal, n. 1 de novembro de 1531, m. 14 de abril de 1537; foi jurado herdeiro em 1535;
Filipe, príncipe de Portugal, 25 de março de 1533, m. 29 de abril de 1539, foi jurado herdeiro do trono em 1535;
Diniz, Infante de Portugal, n. 16 de abril de 1535, m. 1 de janeiro de 1537;
João Manuel, Príncipe de Portugal, n. 3 de junho de 1537, m. 1554; foi jurado herdeiro do trono em 1539. Casou com Joana de Habsburgo, a quarta filha de Carlos V e Dona Isabel. Seu filho nasceu dias após sua morte e se chamou Sebastião, que significa "Desejado".



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