Dom João III - O Piedoso
- Glaucy Lucas
- 11 de set. de 2019
- 16 min de leitura
Atualizado: 12 de jul. de 2021
"como o tempo dá novidades, dá mil cuidados sobejos, dá e tira mil desejos, faz e desfaz mil vontades...". Cancioneiro Geral.

Dom Manuel morreu no dia 13 de dezembro de 1521. Deixou muito abastado o erário
como atrás ficou dito. As viagens continuavam prósperas, o comércio estava em plena expansão, intenso e muito lucrativo. Manteve-se rei e imperador rico, poderoso e respeitado até o último dia de sua vida. Nada devia a ninguém, nem foi pesado aos súditos. Não deixou dívidas pecuniárias, nem de favores, nem coisas a resolver. O reino era portentoso, rico e respeitado ante todas as nações do mundo. Não havia reino que lhe fizesse sombra em riqueza, poder, e magnificência. Teve o Venturoso treze filhos dos quais restaram nove. Estavam com ele, nos seus últimos momentos, oito filhos. Ausente a princesa D. Beatriz, que vivia fora do reino por estar casada com o Duque Carlos III da Saboia.
Dom João III, seu filho primogênito das núpcias com D. Maria de Aragão, subiu ao trono aos dezenove anos. Nasceu este príncipe às duas horas da madrugada do dia 7 de junho de 1502, nos paços da Alcáçova, em Lisboa. Ao nascer, desabou uma grande tempestade, e todos tomaram por um augúrio de felicidade para o Império. No entanto, prenunciava uma grande tempestade sobre o trono. Houve festas por todo o reino. Para demonstrar a alegria sentida por todos, Gil Vicente apresentou o Auto da Visitação ou o Monólogo do Vaqueiro, no quarto da parturiente. Foi batizado a 15 de junho, aos oito dias de vida, na capela de São Miguel nos paços do Castelo, tendo como padrinho o Doge de Veneza, Leonardo Loredano, representado pelo embaixador Pietro Pasqualido, que ali fora agradecer a ajuda do rei Dom Manuel, que o socorreu com 30 velas e 3500 homens contra a armada turca. A escolha de um padrinho fora do círculo familiar, e tão distante do reino, parece demonstrar a insatisfação de Dom Manuel e o desejo de se afastar de todos que com ele conviviam; era uma tentativa de cortar laços. Foram madrinhas a rainha D. Leonor, sua tia; e D. Beatriz, a avó materna. No dia do batismo, lavrou um incêndio em uma parte do paço, que todos tiveram por bom augúrio; todavia, era o prenúncio do fogo que devoraria Portugal. Foi sua primeira ama D. Beatriz de Paiva, e o seu marido Álvaro da Costa, seu aio. Sua segunda ama foi Filipa de Abreu, mulher de Álvaro de Paiva, irmão de Beatriz de Paiva, ambos primos de Fernão de Magalhães, o navegador. Não lhe foi dado um aio, como era costume, mas foi criado por sua mãe, ficando a segurança de sua pessoa a cargo de Gonçalo Figueiroa. Esta decisão muito prejudicou a criação do príncipe porque sua mãe era de Castela, inclinando-se ele para a mãe, firmando sua ligação umbilical com Castela, e perdendo a tão necessária ligação sanguínea com o pai, com o trono, tornando-se incapaz de tomar as medidas corretas para sua preservação. O ensino e o sentir do pai não entraram na alma dele. Em reunião solene nos paços da Alcáçova, na sala dos leões, diante de todos os nobres do reino, foi jurado herdeiro do trono e lavrados os autos da cerimônia, com uma cópia para o rei, e outra para a Torre do Tombo. Antes dos quatro anos, teve por mestre o capelão para o ensinar a ler e o introduzir nos princípios da religião. Martim Afonso ensinou-o a escrever. Sua educação prosseguiu com o castelhano Diogo Ortiz de Vilhegas, que se tornou bispo de Viseu. Estudava com todos os jovens filhos dos duques e condes ligados à família, e com eles aprendeu a gramática latina, ouviu Catão, Terêncio, Virgílio, Salústio, e algumas porções da bíblia. O médico judeu Tomás de Torres, professor da Universidade de Coimbra, ensinou-lhe astrologia, mas o seu aprendizado foi superficial. O doutor Luís Teixeira leu com ele Ovídio, Plínio, Tito Lívio e os princípios gregos; João Menelau, cirurgião grego, ensinou-lhe grego. Aprendeu também direito romano, partes da Instituta, que é hoje a Introdução ao Estudo do Direito. Leu com seu pai as crônicas dos reis de Portugal. Dom João III não teve a educação adequada a um príncipe de tão grande império porque se criou em meio a pessoas desinteressadas em seu desenvolvimento. Desde cedo, o príncipe era tratado por Dom Joãozinho em tom depreciativo e jocoso, e por duas vezes teve a vida em perigo. Em 1508, estando a corte em Almeirim, caiu doente com inflamação da pleura, tão forte que o asfixiou ao ponto de desmaiar. Esta doença pode ocorrer ao se aspirar pó de asbesto, um mineral de silicato de magnésio. Aspirado em pequenas doses, aloja-se no pulmão e provoca tosse, gripe e asma. O aumento de asbesto no pulmão provoca a inflamação da pleura. Este tão perigoso mal pode ter prejudicado seu desenvolvimento mental pela falta de boa oxigenação no cérebro. A gravidade das coisas que se passavam com o príncipe por falta dos cuidados corretos que sua pessoa carecia não eram notados porque os que rodeavam a família eram os mesmos das antigas conjuras. Sua avó Dona Beatriz morreu quando tinha quatro anos; e Dona Leonor, sua tia, acompanhou-o até seus vinte e três anos. Aos doze anos, estando a família em Santos o Velho, caiu de uma varanda, abrindo-se uma ferida em sua testa que o fez perder muito sangue, ficando inconsciente até o dia seguinte. Para além da cicatriz, este horrível acidente, por certo, deixou-o com alguma sequela que se manifestaria mais tarde. Deduzimos que os cuidados da mãe e a vigilância de Figueiroa estavam distantes do ideal. Figueiroa era da família Pamplona, oriundos de Castela, pessoa da confiança da rainha. Melhor fora ao príncipe ter o aio como o tiveram os outros antes dele. Em tudo observamos que o domínio sutil das mulheres aliadas de Castela não havia cessado, e a rainha D. Maria, a mãe do príncipe, juntou-se a D. Leonor para pacificar as últimas desinteligências, com a ideia de uma única família. Isto dava liberdade aos perseverantes conjurados para atentarem contra o herdeiro, usando a pessoa de Dona Leonor e da própria mãe junto ao príncipe.
começou a ter sérios desentendimentos com Dom Manuel, que tentava contornar tudo para manter os problemas restritos ao Castelo de São Jorge.
A ruína de Portugal era feita na casa do rei e ninguém se apercebia do perigo. Tudo ficava encoberto debaixo das juras de amor, devoção e multiplicadas promessas de lealdade. Os que se diziam membros da família tinham ampla liberdade contra a pessoa do príncipe, por consentimento tácito de Dona Leonor e Dona Maria. As feridas do passado recente ainda estavam abertas, mas para elas o passado nunca existiu. Forçoso é admitir que a queda sofrida pelo príncipe deve ter deixado coágulos no cérebro que lhe trouxeram incômodo aos olhos e dores de cabeça, irritações e dificuldade para se concentrar no estudo. Falava devagar mesmo estando irado, acentuando seu tom grave e severo para disfarçar a dificuldade na fala. Nunca levantava a voz, demonstrando pelo olhar tudo o que sentia. Seus olhos verde azulados transmitiam alegria e boa disposição para com todos, expressavam também a ira que não podia verbalizar. A caça, a cavalgada, e os exercícios ao ar livre ajudavam a disfarçar os distúrbios decorrentes da queda por lhe proporcionar uma irrigação sanguínea melhor no cérebro. Nos estudos, demonstrava pouca concentração. É notório que a maior influência sobre o príncipe é de Castela, a começar da mãe, passando pelos mestres, e os amigos até os filhos dos aliados dos reis católicos. Todos os seus amigos eram filhos dos desterrados para Castela, que voltaram a Portugal a chamado do rei. Nem todos os mestres do futuro rei gozavam fama de altas capacidades, sendo todos muito dignos, mas alguns deles não tinham o que é desejável para mestres de príncipes. É para muito se estranhar que recebessem as mesmas lições do príncipe, nas mesmas classes, todos os filhos dos duques e nobres da corte. Era como preparar todos eles para disputar o trono com o real herdeiro. As brincadeiras não tão inocentes nem tão pueris, fizeram aflorar nele instintos agressivos, respondendo ao que visse como atentatório à sua honra e aos seus direitos, segundo o seu temor de ser diminuído e a percepção da ferida que lhe era feita. Confiava muito nos seus amigos e aceitava como verdade o que diziam, tomando com eles conselhos. Não se continha ante a ideia de ser prejudicado por quem quer que fosse, agindo com frieza, mas de modo a tornar legítimas todas as suas atitudes, sem atrair culpas e máculas à sua honra. A necessidade de mostrar seu valor levou-o a disputar até com o rei seu pai, o que entendia ser de seu direito. Por influência dos amigos, começou a ter sérios desentendimentos com Dom Manuel, que tentava contornar tudo para manter os problemas restritos ao Castelo de São Jorge.
Dom Manuel sentiu que seu muito amado filho já não lhe pertencia, mas era moeda forte na mão dos inimigos. Discretamente, começou a preparar Dom Luís para ocupar o trono, levando-o com seu irmão para assistirem as reuniões do reino, exigindo dele mais disciplina e estudo. Ninguém estranhava estarem os dois irmãos juntos nas reuniões porque Dom João estava sempre rodeado de todos os jovens nobres, seja nos estudos, seja nos passatempos, ou nas diversões. O rei não deu casa ao príncipe como era costume, vivendo ele em casa de seu pai até os doze anos. Viúvo, Dom Manuel dormia com os dois filhos Dom João e Dom Luís nos seus aposentos. Suspeitando os nobres da demora em dar casa ao príncipe, cobraram do rei, como se a isso tivessem direito ou autoridade, que fizesse com Dom João o que era costume fazer aos príncipes. Os inimigos de Dom Manuel viram no príncipe Dom João a oportunidade de voltar à liça com sucesso. Tendo o príncipe sua casa, haveria um lugar seguro e insuspeito para atentar contra rei com toda liberdade. Interveio Dona Leonor junto ao rei, como madrinha do príncipe e também dos duques, para que lhe fosse dada casa com seus oficiais. Aos treze anos, Dom João teve casa e foram seus oficiais dom João de Menezes, terceiro filho do conde de Cantanhede, seu camareiro, que morreu em Azamor; o conde dom Martinho de Castelbranco, veador da fazenda; dom João da Silva, conde de Portalegre, que foi seu mordomo mor; Luís da Silveira foi seu guarda mor, que se tornou conde da Sortela; porteiro mor João de Calatayud, natural de Castela; mestre sala Cristóvão de Melo; estribeiro mor dom Pedro Mascarenhas; e todos demais oficiais necessários ao seu serviço. Todos eles viam as limitações do príncipe e por isso diziam ser fácil servi-lo. A brandura do seu trato tirava-lhes o temor e o respeito, e não o serviam a seu gosto; não tinham decoro nem resguardo à sua pessoa, tratando-o muito familiarmente. Não era magro mas não era obeso; vestia-se sempre com trajes típicos portugueses, mas assim fez mais para mostrar a insatisfação que sentia com seu pai.
O príncipe Dom João tinha casamento contratado com Dona Leonor, irmã de Carlos V, desde criança. Morrendo Isabel, a católica, em 1504, sua filha Joana, a louca, ascendeu ao trono por disposições testamentárias, porém já se encontrava descontrolada dos nervos e reinou apenas um ano. Passou a regência a seu pai Fernando de Aragão, no ano seguinte, criando um conflito com Filipe o Belo, que esperava reinar em lugar de Joana. Em maio do ano de 1505, Dom Manuel é chamado a intervir na questão como mediador, e na oportunidade, Fernando de Aragão tentou casar com Dona Joana, a Excelente Senhora. Mas ela recusou por saber que perderia para Fernando os direitos que detinha sobre a coroa de Castela, e seria apenas uma peça no seu tabuleiro. O plano de Fernando era afastar Filipe o belo do trono, usando os exércitos de Dom Manuel. Sendo-lhe vedada esta via, uniu-se à casa de França, casando em 18 de março de 1506, com Germana de Foix, sobrinha de Luís XII de França, que lhe deu apoio militar. Restou infrutífero seu plano, pois Filipe e Joana são jurados reis, e seu filho Carlos é jurado herdeiro do trono. Em 1507, Filipe o Belo morre e Fernando de Aragão volta ao trono, mandando encarcerar sua filha Joana em Tordesilhas no ano de 1509, fazendo a ela o mesmo que Isabel a Católica tinha feito à mãe. Fernando de Aragão morre sem herdeiros e Dom Manuel entendeu de melhor alvitre casar Dona Isabel, sua filha, com Carlos V, e casar-se com D. Leonor, irmã deste, que era de dezenove anos. Isto fez para assegurar direitos dinásticos sobre o trono de Castela. Desse modo, cumpriu os contratos matrimoniais com aquela casa real, fugindo ao temor de ter seu filho Dom João ligado a uma mulher que poderia sufocar sua autoridade. Durante o tempo em que foi mediador das questões de Castela, o rei viu a atuação de Leonor e atentou aos perigos que tal casamento com seu filho Dom João poderia trazer ao reino de Portugal. Ele não teria madureza suficiente para impor sua vontade à Castela, e a força de Leonor poderia subjugar o reino, pondo-o à mercê de Castela. O ambiente familiar em que o príncipe vivia não cooperava para forjar nele a força que deveria ter um imperador, antes fazendo o contrário. Dom João tinha quinze anos quando recebeu por madrasta Dona Leonor. O trabalho dos duques e dos oficiais da casa do príncipe foi intenso e frutificou, despertando nele o sentimento de que fora atraiçoado por seu pai ao tomar-lhe a noiva. Os comentários tecidos em premeditado acaso, tinham a intenção de ferir a alma do príncipe até que, sentindo a ferida, se insurgisse contra o rei. Tão logo se soube das bodas do rei, entraram os duques e condes a urdir uma terrível trama que, a custo, foi contida. O príncipe começou por opinar nos assuntos do reino, e tomar decisões em nome do rei que estava no Crato. Avisado do que ocorria, interpelou o filho sobre tais ações, recebendo como resposta um levante, um convite à guerra. Dom Manuel agiu rápido e sem alardes, mandando sair da corte a uns, e desterrando outros, tirando da casa do príncipe todos os que participaram na conjuração. Estes maus frutos da imaginação do príncipe eram a colheita do laborioso trabalho dos duques e condes, velhos adversários, que o aconselhavam contra o rei. Os duques e seus aliados já tinham conquistado a mente de Dom João e o induziram a principiar uma revolta que o levasse ao trono, apoiando-o com homens de suas casas, de muita experiência em guerras, cujo número era considerável. Lisboa encheu-se de homens, e também o castelo de São Jorge. Os duques ali barricados criticavam as bodas com Dona Leonor abertamente, por ser noiva do filho, por ser mais jovem e o rei já estar de barbas brancas, com filhos herdeiros, todos em idade de casar. O mais acerbo crítico foi dom Luís da Silveira, que Dom Manuel mandou sair da Corte. Dominada a revolta, Dom João temeu a ira do rei e socorreu-se de sua tia e madrinha Dona Leonor, que, a pensar no bem do reino, interviu para trazer a paz e a concórdia entre pai e filho. Entendeu ela que o melhor era dar ao príncipe uma atividade que o pudesse manter ocupado com tarefas distantes do trono, sem prejuízos para o reino. O que lhe pareceu mais inócuo foi um lugar no tribunal. Mesmo discordando do rei, o príncipe toma assento no tribunal e se inclina para os ofícios religiosos, acalentando a esperança de ainda herdar o trono. Desviou sua atenção para os tratados da inquisição, assinados com Isabel a católica e, assessorado por dona Leonor, principiou uma eficiente perseguição aos judeus. Dom Manuel deu a Dom Luís o seu encargo, esmerando-se em seu preparo para deixar-lhe o trono. Dom João III esperou a tempestade amainar mantendo uma vigilância discreta ao pai.
Atentos a tudo que se passava no palácio de São Jorge, os amigos do príncipe que lhe ficaram, cuidaram de manter o contato com os que foram expulsos para Castela, informando-os e recebendo deles instruções. Estando o trono abalado com o primeiro embate, estava aberta uma brecha por onde se poderia recuperá-lo. Era preciso fazer uma política de aproximação por meio dos irmãos Dom Luís e Dom Fernando até voltar ao convívio familiar de que fora banido. Dom João não se fez esperar, e ajudado por Dona Leonor, que estava muito interessada em retomar à convivência, começou a visitar os irmãos. Saía a passeio com os irmãos, entretendo-se com eles na caça, e exercícios, sem demonstrar nada de seus sentimentos. Mas, inteirando-se de como se sentia o pai, decidiu visitá-lo. O rei o recebeu com esperança de ouvir dele um sincero pedido de perdão, o que não ocorreu. Apesar disso, Dom João continuou suas visitas, indo sempre em companhia dos irmãos. O rei não demonstrava mágoa e o aceitava na esperança de que se emendaria e se arrependeria com sinceridade. Mas o príncipe não se curvou e, estando a sós com seu pai, indagou se poderia revogar sua decisão tomada contra ele. Dom Manuel disse que, por aquelas afrontas, o deserdava e passava o trono a seu irmão Dom Luís. O príncipe não se conteve e saiu num rompante da presença do rei, dizendo que jamais perderia seus direitos para seu irmão. Esta ampla liberdade para agir, esse transtorno, quase incontornável, fez Dom Manuel passar dois anos e meio fora de Lisboa para dominar a revolta, que corria o risco de propalar-se por todo o país. Esta ausência não se deveu à peste, mas a um trabalho de sanear o reino dos espíritos exaltados que dominaram a Capital desde o momento em que saíra para receber a nova esposa. Sua entrada triunfal na cidade de Lisboa, noticiada por Gaspar Correia, denota que o levante contra o rei tinha um caráter muito sério, retornando ele à Lisboa como vencedor. Era o seu triunfo, era sua coroação. Não havia razão para tanta pompa e circunstância pela entrada de um rei em sua Capital, no seu palácio, sendo ele já velho e estando em seu terceiro casamento. A peste que grassava Lisboa nada mais era que os duques e seus correligionários a executarem um plano para depor o rei, usando o seu filho e herdeiro. Dom Manuel fez um bom trabalho diplomático e trouxe à obediência os insurretos, evitando o uso de armas. Por estar o príncipe à testa desta conjura, foi deserdado por seu pai.
Dom João prestou sua menagem ao pai sem demonstrar sua contrariedade. Corroído pelo veneno destilado pelos duques e inimigos do reino, retirou-se desgostoso para sua casa. Temendo por sua vida, buscava um meio de impedir que o testamento se tornasse exequível. Reunido com os amigos, procurava uma solução, até que um deles alvitrou que a única maneira de resolver o impasse era a morte de um deles. Os amigos, ávidos de desgraça, quais aves de rapina à espera do corpo morto, esmeravam-se em estudar uma saída enquanto gotejava na alma de Dom João histórias de injustiças da casa real. Não faltaram os conselhos ditados pelo inimigo de nossas almas que, depois de tirar a paz ao espírito do príncipe, fez prosperar a cizânia e a traição já plantadas de longa data, reforçando a ideia de que matar era a solução. Tal como Caim, pensou em matar seu irmão, porém, considerou que não era o melhor a fazer. Não vendo outra saída que não fosse a de se humilhar e pedir perdão ao pai, intensificou suas visitas recheadas de gentilezas e amáveis conversações. Mas não consta que se aproximasse do pai com sinais de arrependimento, limitando-se a beijar-lhe a mão para sair logo em seguida. Assim, dava mostras aos que assistiram a desavença, de que era submisso e a ruptura havia sarado.
Voltando o rei para casa, confirmou sua autoridade e domínio sobre o reino com toda a pompa e circunstância. Inconformados com a vitória do rei, e incansáveis em suas maquinações, os duques planejaram a morte do rei, usando a paz. O rei era envenenado e sentia uma sonolência incontrolável que o fazia dormir ao sentar-se. Cochilava à mesa, dormia no coche, e sentia-se muito cansado. Ao princípio do mês de dezembro, os conjurados viram o efeito do veneno que davam a Dom Manuel. No dia cinco desse mesmo mês, Dom João convidou seus irmãos Dom Luís e Dom Fernando para irem a Almeirim e Salvaterra para caçar e se divertir por uns dias, saindo pela manhã. Ao saírem, estava o rei com sonolência e vômitos, mas nada que o pusesse em perigo de vida. Na ausência dos filhos, foi-lhe administrada a dose fatal que o fez ver que não viveria. Mandou chamá-los e a mensagem chegou no dia sete, sábado, à meia noite. Partiram eles no domingo ao amanhecer, chegando à meia noite do mesmo dia. Encontraram Dom Manuel muito mal, sem mais esperança de vida. Logo ao chegar, Dom João assumiu o lugar à cabeceira do pai, não permitindo que ninguém entrasse nos aposentos do rei. Mandou por uma cama na antecâmara do quarto de modo que nada entrava nem saía sem sua severa fiscalização. Dom João não encobria a ninguém seus sentimentos, mas quando estranhavam sua frieza, respondia que, para não abater mais o enfermo, não podia transparecer sua tristeza. Do lado de fora trabalhavam os rebeldes; junto ao rei militava o filho a milícia da morte, provendo a tudo que os médicos pediam, mas não deixava chegar ao moribundo a administração de algum remédio que porventura o pudesse salvar. Assim todo esforço dos médicos para nada serviu porque iam até Dom João III e dali eram retirados sem que ninguém soubesse. Tendo feito o testamento na ocasião da revolta, o rei fez um codicilo quando estava enfermo. Nele encomendava ao príncipe o justo governo do seu reino e o bom tratamento do seu povo. Pediu muito que velasse pelos infantes seus irmãos, e que deixava dona Leonor por sua mãe, a quem deveria acatar com reverência. Instou muito com Dom João para que se lembrasse dos seus criados. Na sexta-feira, 13 de dezembro, entre 10 e 11 horas da noite, entregou sua alma a Deus. Era de 52 anos de idade dos quais reinou 26. A notícia da morte do rei logo se espalhou por todo o reino. Dizem que Dom João era o que mais sofria, mas suas lágrimas deviam ser de temor de que fosse descoberto que suas mãos estavam tintas do sangue de seu pai. Todo o povo chorou e lamentou a morte deste bom rei.
De acordo com a tradição, o príncipe era levantado por rei três dias depois do enterro do rei, mas não foi possível seguir a tradição devido a fortes chuvas que caíram, adiando a cerimônia por três dias. Aos 19 de dezembro, saiu Dom João III dos paços da Ribeira, onde tinha falecido seu pai, vestido de uma capa de brocado, forrada de arminho, montando um cavalo com capa de ouro, levado pela rédea por seu irmão Dom Fernando. Logo atrás, próximo à montaria estavam seus antigos servidores dom António de Ataíde e dom Diogo de Castro, de cada lado, segurando a ponta da capa. À direita de Dom João ia dom Jaime de Bragança e de Guimarães, Dom Jorge, filho de Dom João II, mestre de Santiago e de Avis e Duque de Coimbra; Dom João, seu filho, Marquês de Torres Novas. Ao lado esquerdo iam dom Fernando de Noronha, marquês de Vila Real; dom Pedro seu filho, conde de Alcoutim; dom João de Vasconcelos, Conde de Penela; dom Manoel Frojaz Pereira, Conde da Feira; dom Francisco Coutinho, Conde de Marialva; iam também os oficiais e muita gente nobre, atrás. Adiante do rei ia seu irmão Dom Luís. Muitos nobres estavam no cortejo, que seguiu em silêncio por respeito à rainha viúva. Chegaram à Igreja de São Domingos onde junto à porta estava um grande palanque ricamente decorado. Um pouco mais ao fundo, sob um estrado para o qual se subia por três degraus, estava a cadeira debaixo de um rico dossel. O príncipe sentou-se ali e recebeu o cetro da mão do Conde de Vila Nova. O Infante Dom Luís ficou à direita do rei, e seu irmão Dom Fernando à esquerda, ambos de pé durante toda a cerimônia. Seu irmão Cardeal Dom Afonso ali estava com todos os prelados. Pelo doutor Diogo Pacheco foi declarado, em alta voz, legítimo herdeiro do trono de Portugal, Dom João, filho primogênito do falecido rei. Após esta fala, o Cardeal Afonso subiu ao estrado com a bíblia na mão, e de joelhos apresentou-a ao rei que nela pôs as mãos e jurou fazer justiça. Após o juramento, o primeiro a prestar menagem foi Dom Luís, que de joelhos, pôs a mão na bíblia e jurou lealdade ao rei, conforme o texto previamente escrito, cujas palavras lhe eram ditadas por d. António de Noronha. Após este juramento, estendeu a bandeira que, até ali, trazia enrolada. Depois disso juraram todos os demais.
Começa a ruína que fez desaparecer todo o tesouro real que Dom Manoel ajuntara. Para conter a revolta, Dom Manuel gastara uma boa soma, para cuja reposição não houve tempo. Dom João III sobe ao trono devedor aos amigos e servidores de sua casa. Devia aos nobres que estavam em Castela, e ao próprio Carlos V. É muito caro pagar para que alguém guarde segredos. Muitos foram os colaboradores que ajudaram Dom João a subir ao trono. Todos receberam gordas quantias, mas nada satisfazia o apetite dos conjurados. Não demorou para que os cofres fossem esvaziados e o reino fosse depauperado. A intenção dos duques era a de criar dificuldades ao rei até à exaustão. Então, como amigos fiéis, seriam chamados a ajudar. Estando com o rei, tomar-lhe-iam a coroa em pouco tempo.



Comentários